A IRREMEDIÁVEL IDIOTIZAÇÃO DA SOCIEDADE
O semanário Sol, com o patrocínio do Millenium BCP pôs no mercado «uma colecção de 12 obras clássicas da literatura portuguesa ilustradas e contadas às crianças por escritores actuais». Aparentemente a idéia é simpática e benzida pelo establishement: clássicos p’ró menino e p’rá menina, pois então, mas contados à sua maneira por um tio ou uma tia com algum nome nas letras.
No que me diz respeito, não vou ler, não vou comprar, nem vou recomendar a nenhum menino ou menina que leia estes atentados culturais, fraudes, paródias de mau gosto, oportunismo barato, que o resto que se possa chamar à iniciativa é melhor não pôr por escrito. Na minha opinião trata-se de um atentado à memória e à obra dos escritores que aparecem na colecção, nomeadamente Eça de Queiroz, Camilo, Garrett, Julio Dinis e Gil Vicente, assim forçados a dar boleia, sem hipótese de recusa, a José Luís Peixoto, Rosa Lobato de Faria, Pedro Teixeira Neves, José Jorge Letria, Clara Pinto Correia, Albano Martins, António Torrado, Rui Lage, Rui Zink, Possidónio Cachapa, Ana Luisa Amaral e Francisco José Viegas. Tudo boa gente, mas sem desculpa para esta maroteira comercialona.
Em primeiro lugar quase todos aqueles grandes escritores deixaram obra original susceptível de ser lida por crianças sem os favores literários das tias e dos tios contratados; bastava então editar esses textos, íntegros e fidedignos, apenas com a necessária actualização ortográfica e algumas notas de explicação para os termos e contextos caídos em desuso. Em segundo lugar, como é que, sem fazer dos textos originais uma limonada artificial de mau gosto, se explica o incesto de Os Maias a uma criança? E o lavar da honra com sangue ou uma paixão funesta d’ O Amor de Perdição? E a Mary de A Relíquia, entra ou não? Não valeria mais esperar que as crianças crescessem em corpo e entendimento - lendo entretanto os textos que aqueles autores para elas realmente escreveram - e então na altura adequada, que varia de pessoa para pessoa, deixá-las ler a obra verdadeira, integra, deliciosa, como o autor a concebeu para gente adulta de todas as idades?
Mas não. Os promotores da idéia acham-se com certeza uns génios, na linha de todos aqueles que concorrem para a idiotização da sociedade actual e que, formados em universidades speed culture, acham que vale tudo, o que importa é ter “sucesso”, vender muito, ir para os topes, acalcanhar seja lá o que for para “vencer”.
E já agora, se para adoptar uma criança é necessário tanta burocracia e peritagens de “especialistas”, ocorre perguntar se todos estes “adaptadores” têm tido sucesso como pais, educadores, professores, ou simplesmente como cidadãos equilibrados capazes de entender o que é uma criança ou, por outras palavras, se os enredos ficcionais escolhidos - pois não se trata só de “textos” e ilustrações - são os mais adequados para as ditas. Dir-me-ão que os pais farão o filtro: mas o problema é que os que hoje são pais, na sua maioria, foram criados na literatura de supermercado ou fizeram cursos superiores a ler fotocópias sublinhadas ou a responder aos testes (quando os houve) com cruzinhas. Alinham pelo mesmo modelo e diapasão.
Não se admirem pois se daqui a uns poucos de anos encontrarem jovens adultos que opinarão com o ar mais sério deste mundo que já leram Os Maias do José Peixoto Queiroz, Os Incas do Gil Vicente, O Inferno do José Castelo Branco, O Barqueiro do Millenium do Fernando Pessoa, A Relíquia Perdida do Eça Spielberg ou o Frei Luís do Miguel de Sousa Tavares.
Agora é para o que está. É entrar, é entrar que o Vale Tudo é que está a dar. Depois das universidades do tricot e outras idiotizações da sociedade, aparentemente baseadas na “democratização da cultura”, acabaremos por ter cursos de gestão em fascículos para bébés recém-nascidos. Na sua simplicidade humana, estes apenas produzem caca: suponho que ainda não se vende.
O semanário Sol, com o patrocínio do Millenium BCP pôs no mercado «uma colecção de 12 obras clássicas da literatura portuguesa ilustradas e contadas às crianças por escritores actuais». Aparentemente a idéia é simpática e benzida pelo establishement: clássicos p’ró menino e p’rá menina, pois então, mas contados à sua maneira por um tio ou uma tia com algum nome nas letras.
No que me diz respeito, não vou ler, não vou comprar, nem vou recomendar a nenhum menino ou menina que leia estes atentados culturais, fraudes, paródias de mau gosto, oportunismo barato, que o resto que se possa chamar à iniciativa é melhor não pôr por escrito. Na minha opinião trata-se de um atentado à memória e à obra dos escritores que aparecem na colecção, nomeadamente Eça de Queiroz, Camilo, Garrett, Julio Dinis e Gil Vicente, assim forçados a dar boleia, sem hipótese de recusa, a José Luís Peixoto, Rosa Lobato de Faria, Pedro Teixeira Neves, José Jorge Letria, Clara Pinto Correia, Albano Martins, António Torrado, Rui Lage, Rui Zink, Possidónio Cachapa, Ana Luisa Amaral e Francisco José Viegas. Tudo boa gente, mas sem desculpa para esta maroteira comercialona.
Em primeiro lugar quase todos aqueles grandes escritores deixaram obra original susceptível de ser lida por crianças sem os favores literários das tias e dos tios contratados; bastava então editar esses textos, íntegros e fidedignos, apenas com a necessária actualização ortográfica e algumas notas de explicação para os termos e contextos caídos em desuso. Em segundo lugar, como é que, sem fazer dos textos originais uma limonada artificial de mau gosto, se explica o incesto de Os Maias a uma criança? E o lavar da honra com sangue ou uma paixão funesta d’ O Amor de Perdição? E a Mary de A Relíquia, entra ou não? Não valeria mais esperar que as crianças crescessem em corpo e entendimento - lendo entretanto os textos que aqueles autores para elas realmente escreveram - e então na altura adequada, que varia de pessoa para pessoa, deixá-las ler a obra verdadeira, integra, deliciosa, como o autor a concebeu para gente adulta de todas as idades?
Mas não. Os promotores da idéia acham-se com certeza uns génios, na linha de todos aqueles que concorrem para a idiotização da sociedade actual e que, formados em universidades speed culture, acham que vale tudo, o que importa é ter “sucesso”, vender muito, ir para os topes, acalcanhar seja lá o que for para “vencer”.
E já agora, se para adoptar uma criança é necessário tanta burocracia e peritagens de “especialistas”, ocorre perguntar se todos estes “adaptadores” têm tido sucesso como pais, educadores, professores, ou simplesmente como cidadãos equilibrados capazes de entender o que é uma criança ou, por outras palavras, se os enredos ficcionais escolhidos - pois não se trata só de “textos” e ilustrações - são os mais adequados para as ditas. Dir-me-ão que os pais farão o filtro: mas o problema é que os que hoje são pais, na sua maioria, foram criados na literatura de supermercado ou fizeram cursos superiores a ler fotocópias sublinhadas ou a responder aos testes (quando os houve) com cruzinhas. Alinham pelo mesmo modelo e diapasão.
Não se admirem pois se daqui a uns poucos de anos encontrarem jovens adultos que opinarão com o ar mais sério deste mundo que já leram Os Maias do José Peixoto Queiroz, Os Incas do Gil Vicente, O Inferno do José Castelo Branco, O Barqueiro do Millenium do Fernando Pessoa, A Relíquia Perdida do Eça Spielberg ou o Frei Luís do Miguel de Sousa Tavares.
Agora é para o que está. É entrar, é entrar que o Vale Tudo é que está a dar. Depois das universidades do tricot e outras idiotizações da sociedade, aparentemente baseadas na “democratização da cultura”, acabaremos por ter cursos de gestão em fascículos para bébés recém-nascidos. Na sua simplicidade humana, estes apenas produzem caca: suponho que ainda não se vende.
J. A. Gonçalves Guimarães
Mesário-mor da CQ
2 comentários:
Mas que grande exagero, francamente! Eu, que conto apenas com uns tenros 32 aninhos, e me gabo de ter lido praticamente todos os clássicos, toda a vida recordo passarem-me pelas mãos adaptações de clássicos (ou resumos, ou o que mais lhes queiram chamar) quer de obras portuguesas quer de obras estrangeiras. Apenas um exemplo (dois): as "Fábulas" de La Fontaine e as de Esopo. Possuo uma adaptação - livrinhos bonitos, como já não se fazem - que leva pelo menos 25 anos em cima. O que não me impediu de ler mais tarde as versões integrais, e, no caso de La Fontaine, no texto original em francês. Não fossem aliás comuns as versões abreviadas, ou resumidas, ou adaptadas, não haveria necessidade da indicação, usada em todo o mundo nas capas de milhares e milhares de livros, de "versão integral" ("unabridged", no inglês).
O que pode questionar, com toda a legitimidade, não será tanto a pertinência de uma colecção deste género, mas a qualidade de cada adaptação individualmente considerada. Isto é, o resultado da adaptação é um texto literário criterioso ou não? Se quer saber, há de facto, em dois ou três volumes da colecção em causa, uma idiotização dos textos originais, e consequentemente um mau serviço prestado aos leitores. Mas isso deve ser imputado aos responsáveis por essas adaptações.
No que ao meu caso em particular diz respeito, expliquei tudo aqui:
http://www.editonweb.com/Noticias/NoticiasDetalhe.aspx?nid=1586&editoria=3
Saudações do
Rui Lage
Meu Caro Rui Lage
Permita que o trate assim, mesmo sem o conhecer. E que comece por lhe dizer que ainda hoje o meu livro nº 1 é uma adaptação da Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, o meu primeiro livro “a sério” tinha eu seis anos. E depois de ler as suas preocupações, quase direi éticas, perante a adaptação do texto de António Vieira, não duvidarei que fez um bom trabalho. Mas, a questão é que Vieira, bem assim como Pinto e outros clássicos não só não fizeram textos para crianças e juvenis como, efectivamente, têm de ser explicados em linguagem actual, com o saber e as preocupações que enuncia na sua entrevista. Ora acontece, como também afirma, que nem todos os autores das adaptações terão esse saber e esse cuidado. E a questão principal é que alguns dos autores adaptados não só escreveram aquelas obras para adultos, como, eles próprios, também escreveram para gente em crescimento e em formação.
Recentemente vi Os Maias adaptado a gatos com o título Os Miaus: a literatura de supermercado é um lixo cultural muito consumido. É essa a minha opinião. Que não é necessariamente a da Confraria, sendo esta um espaço livre de diálogo. Sou contra qualquer fundamentalismo, literário ou não, mas não bato palmas ao que não gosto.
Sei que nem sempre é fácil, mas, se puder, demarque-se da literatura easy. Quem lerá hoje Sara Beirão ou Odete de Saint Maurice, ou mesmo Joaquim Paço d’Arcos?
Não sou necessariamente contra todas as adaptações: As Minas de Salomão do Eça são muito mais divertidas (para portugueses) do que o original inglês. Mas foi uma adaptação “deliberada”. Quanto aos seus próprios textos, os do Eça, valerá a pena lê-los nas versões completas e na idade certa. O “resto” não vale a pena. Mas um dia destes vou ler os seus textos. Fiquei curioso.
Saudações queirosianas
J. A. Gonçalves Guimarães
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