O «LIVRO DOS MORTOS» DO ANTIGO EGITO
A designação de «Livro dos Mortos» é uma tradução moderna da expressiva locução egípcia Rau nu peret em heru (rw nw prt m hrw), que, à letra, vem a dar «Capítulos de sair para o dia», ou «Fórmulas para sair para o dia», «Fórmulas para sair de dia», ou ainda, numa forma porventura mais completa e mais expressiva, e que aparece amiúde em português, «Fórmulas para sair à luz do dia», a qual, não seguindo literalmente a locução egípcia que serve de título à compilação, enfatiza bem a luminosidade diurna que o defunto almeja e quer alcançar. No outro mundo paradisíaco, o defunto ressuscitado deseja brilhar como o deus Ré e fruir a eternidade como o deus Osíris,
As várias designações partem do título inicial, e hoje universalmente divulgado, que surgiu em meados do século XIX pela mão do egiptólogo alemão Richard Lepsius, que deu à compilação de fórmulas mágicas que estudou o nome de Todtenbuch. O notável pioneiro da egiptologia alemã não teve uma tarefa fácil, porque esse «livro» é composto por cerca de duzentos capítulos, muitos deles recheados de ambiguidade e grande complexidade, com a agravante de certos capítulos não terem a mesma redação, variando consoante os exemplares que foram produzidos em diferentes períodos históricos. Esses exemplares estão redigidos em escrita hieroglífica cursiva, em geral com um fino e elegante traço, ou então em escrita hierática, e ainda, embora seja mais raro, em escrita demótica, já na fase final da civilização egípcia (alguns exemplares são mesmo do período romano). Muitos dos capítulos estão decorados com gravuras, desenhadas a traço ou pintadas, por vezes com um belo cromatismo e grande minudência nos detalhes, conhecidas habitualmente por vinhetas.
Desde que apareceram na Europa os primeiros exemplares em papiro, julgou-se que, de uma forma bastante aligeirada, o «Livro dos Mortos» seria uma espécie de Bíblia para uso dos piedosos Egípcios. E embora os especialistas desde cedo tivessem percebido que esse diversificado ritual de preparação para a outra vida, cujos capítulos figuravam habitualmente redigidos em papiros, em estatuetas funerárias, ou em sarcófagos de madeira ou de cartonagem, não era de modo algum uma Bíblia egípcia, essa ideia desvirtuada persistiu no imaginário do público. Mas a verdade é que não se podem fazer tais comparações ínvias, dado que o «livro», onde ao longo de vários séculos (entre o Império Novo e a Época Greco-romana) se reuniram os mais díspares textos e gravuras, não é de facto uma Bíblia, nem tem nada a ver com o Corão. Além disso, não se trata de facto de um livro (no sentido habitual deste termo) e nem foi feito apenas para mortos – os textos dos rolos de papiro, que também eram pintados nas paredes dos túmulos, seriam «lidos» como autênticos «textos de apoio», destinados a ajudar o defunto na sua incerta e difícil viagem rumo ao Ocidente e à Duat (o outro mundo, o paraíso, o Além, entre outras alusões), onde muitos capítulos ou fórmulas do «Livro dos Mortos» iam demonstrar, supostamente, a desejada eficácia que deles se esperava. É que alguns deles até estavam complementados por expressivas ilustrações com imagens das divindades ou de estranhos e por vezes aberrantes seres do Além invocados nos textos escolhidos para o «livro», os quais eram guardiões das portas de acesso à Duat.
Os defuntos, quando ainda estavam vivos e eram potenciais clientes para adquirir os papiros ou encomendar o seu túmulo, tinham à sua disposição apropriados passos do «Livro dos Mortos» selecionados de «catálogos», para depois serem pintados nas paredes do túmulo ou no sarcófago, e ainda versões reduzidas ou mais dilatadas nos espaços disponíveis dos chauabtis e dos uchebtis (as designações das estatuetas funerárias), onde se gravava o capítulo 6 para a corveia eterna, ou então profiláticos escaravelhos, feitos geralmente de pedra, na base dos quais se inscrevia o capítulo 30, para que o coração do defunto não testemunhasse contra ele no julgamento final.
Os exemplares do «Livro dos Mortos» eram geralmente colocados dentro do sarcófago, mas também podiam ser enrolados e guardados dentro de uma caixa provida de uma tampa feita na base de uma estatueta de madeira pintada de Sokar-Osíris, ou, num mais alargado sincretismo, de Ptah-Sokar-Osíris. São conhecidos diversos casos de papiros encontrados na própria múmia, junto dos braços, entre as pernas, sobre o coração (onde muitas vezes se depositava um escaravelho com uma das duas versões do capítulo 30), ou mesmo incorporados nas faixas da múmia.
O propósito da coletânea, recheada com tantas fórmulas de cariz mágico e profilático, nunca foi estabelecer as bases da religião egípcia, nem sequer guiar os crentes para uma vida específica religiosa, mas sim para auxiliar os seus donos no outro mundo, na Duat, eles que aliás tinham bem pago o seu exemplar pessoal ainda nesta vida. Mas ainda durante a sua passagem efémera por este mundo o aspirante à eternidade (por ter durante a sua vida praticado a maet, sendo justo, afetuoso, solida´rio e correto) podia tomar conhecimento de certos passos essenciais da compilação funerária, pois alguns capítulos seriam lidos com ele ainda em condições físicas e mentais apropriadas para a fruição mágica de tais textos, produzidos por letrados ligados aos templos sem qualquer intervenção profética de um mensageiro divino. Na verdade, a religião egípcia não assentava sobre revelações: as suas doutrinas não eram atribuídas a nenhum profeta ou a qualquer intermediário com inspiração divina, que possa ser comparado a Cristo, a Maomé ou a Buda, figuras conhecidas da religiosidade universal que proporcionaram a discípulos e crentes livros alicerçadores da respetiva fé. Por outro lado, o «Livro dos Mortos» preocupa-se, basicamente, com a vida no Além, e não pode ser visto e apreciado como um texto fundamental, dogmático e canónico, mas sim como parte de uma vasta e complexa literatura religiosa, da qual, de resto, nem é o melhor exemplo.
Está agora em curso a preparação de uma versão do «Livro dos Mortos» em português, para superar uma edição imprópria e pejada de erros que existe por aí, e para evitar a «consulta» de uma versão jagúncica brasileira da editora Humus, que enxovalham o texto original egípcio e chegam a ser insultuosas para com os leitores que inadvertidamente leem tais traduções acintosas.
Luís Manuel de Araújo
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