Bacharel em Direito, filho de magistrado, neto de magistrado, Eça de Queirós depressa aborreceu as leis e a prática de advogado. Sobre a justiça e os tribunais em abstrato quase nunca escreveu e se o fez foi de soslaio. Conhecia o sistema e sabia que cair-lhe nas garras era penoso, caro e de imprevisível desfecho; por mais razão que o cidadão tivesse, sabia que não era certo que vencesse e, ainda que o conseguisse, provavelmente ficaria arruinado. Para Eça de Queirós «... a magistratura é um poder eminentemente conservador que entende perfeitamente tudo quanto não seja acrescentar a mínima inovação às coisas que ela estivera na véspera à noite a inventariar...» (As Farpas, coordenação de Maria Filomena Mónica, vol. I, 171/172). Não se pode dizer que sobre os juizes tivesse a mesma opinião que tinha o Marquês de Sade, mas andava por lá perto. Não criticando directamente o poder judicial (Eça não era homem de fortuna nem tinha alma de aventureiro!), é na descrição de alguns dos seus titulares que o escritor melhor nos apresenta a sua ideia sobre este órgão de soberania que, por mais tinta preta que lance na água, como faz o polvo quando quer fugir, só o é quando exerce a soberania em nome do Povo e não dos códigos em que este já não se revê, exactamente porque a vida é concreta e dinâmica e não um qualquer fóssil que possa ser catalogado pelas ciências jurídicas.
Na extensa galeria de tipos queirosianos da Justiça e do Direito encontramos o desembargador Amado (O Conde d’Abranhos) que «tivera uma carreira singularmente fácil» e era «um ventre... e assinava... onde os colegas lhe indicavam com o dedo»; o Dr. Margaride (A Relíquia) «aposentara-se, farto dos autos...» e gostaria de dar «... uma cacheirada mortal no ateísmo e na anarquia», como fez na sua última homilia de Natal o Senhor Cardeal Patriarca de Lisboa (estas coisas repetem-se que Diabo, perdão, que diabo!).
Quanto aos professores de Direito, então exclusivos da excelsa Coimbra e hoje disseminados pelas suas sucursais públicas e privadas, já então «a sua veneranda ciência, os seus achaques, os seus serviços de decano[s], inspiravam a todos os que admiram estes vetustos sábios, encanecidos nos comentários de vetustos compêndios, uma admiração simpática», diz Eça referindo-se ao lente Dr. Pascoal em O Conde de Abranhos. Ora acontece que hoje há uma leva de juizes novos que era suposto renovarem a Justiça, mas que nem têm ainda ciência para tal, nem nos inspiram admiração nem, muito menos, simpatia.
Quanto aos advogados, o Dr. Vaz Correia (O Conde de Abranhos) era conhecido em Lisboa por ter «... saliente a barriguinha própera»; e no que diz respeito aos formados em Direito que dão pelo nome de juristas, tomemos como exemplo queirosiano o Pacheco de A Correspondência de Fradique Mendes, «dono de um imenso talento» que nunca serviu para nada. Mesmo os estudantes de Direito, não são normalmente retratados pelo escritor pelo seus interesses intelectuais: Teodósio Margarido (A Capital), em vez de compêndios e tratados, fazia-se normalmente acompanhar de «uma moca enorme». Podíamos continuar pelo resto do quadro do pessoal do Órgão de Soberania e ver como Eça retratou os escrivães e os outros funcionários judiciais, mas não vale a pena, até porque estes pouco riscam na tocata do órgão, a não ser na desafinação que calha ao cidadão que tem de lhes aturar a música. Por isso leiam o que diz Eça de Queirós naquilo que ele realmente escreveu, e não no que outros acham que ele devia ter escrito, pois até já li um livreco de um professor de Direito de Coimbra a querer pôr o escritor muito contente, venerador e obrigado com o curso que ali frequentou. Volta António Ferro, que estás perdoado!
Obviamente que nem toda a Justiça do passado e do presente cabe na caricatura queirosiana; há ainda, e sempre houve, quem levasse a dita a sério e fizesse por exercê-la em nome do Povo, tirando a venda à senhora que joga à cabra-cega com os cidadãos que habitualmente a encontram na fachada, no átrio ou mesmo nas salas de audiência dos tribunais.
Queremos que ela nos veja bem e saiba ao que vamos. É que «... fora da observação dos factos e da experiência dos fenómenos, o espírito não pode obter nenhuma soma de verdade», como escreveu o jovem Eça de Queirós no Districto de Évora, já lá vão tantos anos. Mas ainda há quem tal não tenha percebido, provavelmente porque a clareza de pensamento não vem nos códigos.
J. A. Gonçalves Guimarães
Legenda: La Justice, de Duret
in Tableau de Paris: Paulin et Le Chevalier, 1853, p. 156